
A telemedicina deixou de ser um experimento apressado da pandemia e virou infraestrutura. Hoje ela aparece desde a atenção primária até o diagnóstico por imagem, passando por saúde mental, monitoramento remoto e prescrição digital. No Brasil, o arcabouço regulatório amadureceu, o capital voltou a circular no setor e um punhado de empresas já opera em escala, combinando tecnologia com redes de profissionais de saúde e integrações com o sistema público e o mercado de planos.
Aqui no AB Startups Saúde, vamos destrinchar esse mundo para você.
O que é telemedicina na prática?
Vamos começar com definições básicas. Telemedicina é o exercício da medicina mediado por tecnologias digitais, em tempo real ou de forma assíncrona. A norma que organiza o tema é a Resolução CFM 2.314/2022, que descreve modalidades como teleconsulta, teleinterconsulta, telediagnóstico, telemonitoramento, teletriagem e teleconsultoria. O texto reforça que a consulta presencial segue como referência e que o médico tem autonomia para indicar o formato adequado, com registro no prontuário eletrônico e requisitos de segurança e interoperabilidade.
Há uma distinção útil. Telessaúde é o guarda-chuva que abrange todos os profissionais de saúde. Telemedicina é o recorte médico, com atos e responsabilidades específicos. Em 2022, essa abertura foi consolidada em lei federal, ao autorizar e disciplinar a telessaúde em todo o território nacional, alinhando o país ao que já vinha acontecendo no SUS e no setor privado.
Linha do tempo regulatória que destravou o mercado
Em março de 2020, o Ministério da Saúde publicou a Portaria 467 e, alguns dias depois, veio a Lei 13.989/2020, autorizando o uso da telemedicina de forma excepcional durante a crise de Covid-19. O passo seguinte foi a regulamentação definitiva do CFM em 2022 e, no mesmo ano, a Lei 14.510 inseriu a telessaúde na Lei Orgânica da Saúde, deixando de ser uma exceção para virar política de longo prazo. Na prática, isso deu previsibilidade a hospitais, operadoras e startups.
Do lado da proteção de dados, a LGPD classifica informações de saúde como sensíveis e exige bases legais específicas, consentimento claro quando aplicável e controles técnicos e organizacionais. A resolução do CFM também amarra a necessidade de prontuários eletrônicos com nível de garantia de segurança compatível e de assinatura digital qualificada no padrão ICP-Brasil para documentos médicos. Isso vale, por exemplo, para atestados e receitas digitais.
Como as startups operam
O ecossistema brasileiro costuma se organizar em alguns blocos.
- Plataformas que conectam pacientes a clínicos gerais e especialistas por vídeo, chat e telefone, muitas vezes com times de coordenação do cuidado, integração com exames e encaminhamento presencial quando necessário. É onde aparecem os modelos B2B2C com operadoras e RHs corporativos.
- A psicoterapia online virou uma categoria própria e, no Brasil, ganhou escala dentro de ecossistemas mais amplos de saúde digital. A fusão entre Conexa e Zenklub em 2023 é um caso emblemático.
- Empresas de telerradiologia e outros exames emitem laudos a distância para clínicas e hospitais, reduzindo tempo de espera e viabilizando cobertura fora dos grandes centros. É um mercado com players maduros, integrações com PACS e uso crescente de IA para triagem.
- Plataformas permitem ao médico emitir receitas com assinatura qualificada e, do lado do paciente, comprar o medicamento e agendar exames pela mesma interface, atendendo às regras de ICP-Brasil e às boas práticas do CFM.
- Biotechs brasileiras colocaram na rua equipamentos rápidos de análise e conectaram o resultado a plataformas em nuvem, aproximando diagnóstico e conduta clínica.
O tamanho da adoção
A pandemia funcionou como um empurrão. Entre 2020 e 2021, milhões de consultas por telemedicina foram realizadas no país por hospitais, operadoras e redes privadas. O pico de utilização deu lugar a uma estabilização em patamar superior ao pré-pandemia, com forte correlação entre volume e investimento. As operadoras chegaram a operar centenas de milhares de teleconsultas por mês no auge de 2020, com alto índice de resolução.
Do lado dos recursos financeiros, o mercado de healthtechs seguiu ativo, ainda que mais seletivo. O tíquete médio diminuiu e o número de negócios aumentou, com telemedicina entre as tecnologias mais adotadas. É um retrato de capital mais criterioso e maior foco em eficiência e desfechos clínicos.
Quem são os principais players e o que eles fazem
Conexa Saúde é um dos maiores ecossistemas de saúde digital do país. Em 2023, anunciou a fusão com a Zenklub, unindo cuidado físico e emocional. Em 2024, já no breakeven segundo a imprensa especializada, adquiriu a Lina, de inteligência de dados para gestão do cuidado. A companhia captou recursos relevantes em 2022 e projeta receitas significativas.
Docway e Docpass são pioneiras em levar telemedicina para grandes carteiras de operadoras e empresas. Em 2021, anunciou app de triagem com IA para agilizar teleconsultas e concentrar histórico do paciente.
ViBe Saúde é uma plataforma nascida no B2C que captou rodada Série A em 2021 e vem posicionando um ecossistema digital com teleconsultas, entrega de medicamentos e rede de parceiros presenciais.
dr.consulta Online é uma rede de clínicas populares quye integrou telemedicina à sua oferta, com agendamento digital e uma malha física que facilita o híbrido quando há necessidade de exame físico.
Portal Telemedicina e Telelaudo: No telediagnóstico, a Telelaudo se apresenta como líder com acreditação específica do Colégio Brasileiro de Radiologia, enquanto a Portal conecta equipamentos médicos e radiologistas, usando IA para triagem e laudos mais rápidos.
Memed: A jornada de e-prescription ganhou tração com plataformas que permitem ao médico assinar digitalmente e ao paciente seguir o cuidado sem fricção, inclusive com compra do medicamento. O CFM mantém um portal oficial de receitas digitais que exige certificado ICP-Brasil, e o ecossistema privado complementa a experiência.
Hilab: Biotech curitibana que desenvolveu dispositivos rápidos de biologia molecular e integra resultados à nuvem, encurtando o ciclo diagnóstico no ponto de cuidado.
Telemedicina no SUS
O SUS foi pioneiro em telessaúde com o programa Telessaúde Brasil Redes, criado em 2006 e institucionalizado em 2007. Hoje o tema é uma das frentes do SUS Digital, com foco em ampliar o acesso a especialistas, reduzir filas e integrar o cuidado entre níveis de atenção. Para startups, esse histórico importa porque cria demanda, padrões e oportunidades de integração com a atenção básica municipal e estadual.
O que está funcionando e os pontos de atrito
A combinação de Resolução CFM 2.314/2022, Lei 14.510/2022 e LGPD deu base clara para operar. A norma do CFM determina prontuário eletrônico com nível de garantia NGS2, registro adequado de cada atendimento e consentimento livre e esclarecido para o uso de telemedicina. Documentos devem ser assinados com certificado ICP-Brasil. Quem não cumpre esses requisitos perde elegibilidade para contratos e sofre resistência de conselhos e operadoras.
Depois do salto de 2020 e 2021, o volume de teleconsultas estabilizou em patamar elevado, mas com concentração no Sudeste. Isso reforça o papel de telediagnóstico e telessaúde como mecanismos de mitigação dos desertos médicos, desde que haja conectividade e organização da rede local.
A dor não está só na consulta. Sem integração com laboratórios, farmácias, autorização de guia e faturamento, a experiência degrada e o custo sobe. A exigência de SRES interoperável empurra o ecossistema para padrões mais sólidos, mas a implementação é gradual e desigual.
No privado, o desenho de pacotes e a medição de desfechos importam para evitar sobreuso e controlar sinistralidade. No corporativo, engajamento e retorno em saúde mental viraram métricas centrais. A consolidação de players, como no caso Conexa-Zenklub, nasceu desse encaixe entre jornada clínica e ROI percebido pelos pagadores.
Tendências que devem guiar os próximos anos
Tele é a porta de entrada, mas com base para transitar entre físico e digital. Redes próprias de clínicas, parcerias com laboratórios e logística de medicamentos consolidam o percurso do paciente.
Do verificador de sintomas ao priorizador de exames em radiologia, o uso de modelos para reduzir tempo de espera e aumentar acurácia tende a se tornar invisível para o paciente e indispensável para a operação.
O SUS Digital deve ampliar teleconsultas entre equipes da atenção básica e especialistas, algo que tem efeito direto na redução de filas e na capacidade de resolutividade dos municípios.
Os movimentos de fusão e aquisição mostram que escala e foco em linhas de cuidado contam. Startups que se posicionam em nichos de alto valor, integradas a operadoras e hospitais, tendem a sobreviver melhor aos ciclos de capital.
Exemplos de uso que ilustram o valor
Uma empresa com milhares de colaboradores contrata um pacote de saúde emocional e clínica. O funcionário agenda psicoterapia online e, se necessário, é encaminhado para psiquiatria e exames. Em paralelo, a plataforma coordena casos crônicos, com acompanhamento remoto e gatilhos para consultas presenciais. Esse encadeamento só funciona com prontuário unificado, prescrição digital e regras claras de consentimento e sigilo previstas em lei.
Uma rede municipal sem radiologistas em tempo integral envia exames de imagem para telerradiologia e recebe laudos no mesmo dia. Os casos urgentes são triados por IA e voltam antes, ajudando a ordenar o fluxo do pronto atendimento.
Para quem quer empreender ou contratar
Prontuário eletrônico compatível com NGS2, logs completos, termo de consentimento claro e assinatura digital qualificada para documentos médicos. Sem isso, o resto é maquiagem.
Operar no Brasil significa conversar com planos, TISS, PACS, farmácias, laboratórios e sistemas municipais. A diferença entre piloto e escala costuma estar nesses fios invisíveis.
Defina a linha de cuidado e os indicadores. Resolução clínica, tempo de espera, taxa de encaminhamento para presencial e adesão a tratamentos são métricas que contam muito mais do que número bruto de consultas.
Existem oportunidades nos dois mundos. Entender a jornada local e as prioridades dos pagadores evita ofertas genéricas.